terça-feira, 6 de maio de 2014

Eles São Feitos de Carne


 
Eles São Feitos de Carne

Categorias: por Marco Filipe

 

“Eles são feitos de carne.”

“Carne?”

“Carne. Eles são feitos de carne.”

“Carne?”

“Não existe qualquer dúvida. Nós apanhamos vários de diferentes partes do planeta, trouxemo-los a bordo das nossas naves de reconhecimento, e sondámo-los a todos de uma ponta à outra. Eles são completamente carne.”
“Isso é impossível. E então as ondas de rádio? As mensagens para as estrelas?”

“Eles usam as ondas de rádio para falar, mas os sinais não vêm deles. Os sinais vêm de máquinas.”

“Então quem fez as máquinas? É com eles que queremos contatar.”

“Eles fizeram as máquinas. É isso que estou a tentar dizer-te. A carne fez as máquinas.”

“Isso é ridículo. Como pode carne fazer uma máquina? Estás a pedir-me para acreditar em carne se ciente.”

“Não te estou a pedir, estou a dizer-te. Estas criaturas são a única raça se ciente naquele sector e eles são feitos de carne.”

“Talvez eles sejam como os Orfolei. Tu sabes, uma inteligência baseada em carbono que passa por um estádio de carne.”

“Não. Eles nascem carne e morrem carne. Nós estudámo-los durante várias das suas gerações, que não duraram muito. Fazes ideia de qual é o tempo de vida da carne?”

“Poupa-me. Ok, talvez eles sejam apenas parcialmente carne. Tu sabes, como os Weddilei. Uma cabeça de carne com um cérebro de plasma electrónico no interior.”

“Não. Nós pensámos nisso, uma vez que eles têm cabeças de carne, como os Weddilei. Mas eu disse-te, nós sondámo-los. Eles são carne de uma ponta à outra.”

“Não têm cérebro?”

“Oh, há um cérebro, isso é certo. Só que o cérebro é feito de carne! É isso que eu tenho tentado dizer-te.”

“Então… o que faz o pensamento?”

“Não estás a entender, pois não? Tu recusas-te a lidar com o que te estou a dizer. O cérebro faz o pensamento. A carne.”

“Carne que pensa! Estás a pedir-me para acreditar em carne pensante!”

“Sim, carne pensante! Carne consciente! Carne que ama. Carne que sonha. A carne faz tudo! Estás a começar a entender ou tenho de recomeçar do início?”

“Meu deus. Estás a falar mesmo a sério. Eles são feitos de carne.”

“Obrigado. Finalmente. Sim. Eles são realmente feitos de carne. E eles têm tentado entrar em contato conosco há quase cem dos seus anos.”

“Meu deus. Então o que tem esta carne em mente?”

“Primeiro, ela quer falar conosco. Depois eu imagino que queira explorar o Universo, contatar outros se cientes, trocar ideias e informação. O costume.”

“É suposto nós falarmos com carne.”

“É essa a ideia. É essa a mensagem que eles estão a enviar por rádio. ‘Olá. Está aí alguém. Alguém em casa.’ Esse tipo de coisas.”

“Então, eles falam realmente. Eles usam palavras, ideias, conceitos?”

“Oh, sim. Exceto que o fazem com carne.”

“Eu pensava que me tinhas dito que eles usavam o rádio.”

“E usam, mas o que achas que está no rádio? Sons da carne. Sabes o som de quando se mexe ou se bate na carne? Eles falam batendo com a carne deles uma na outra. Eles conseguem até cantar esguichando ar através da sua carne.”

“Meu deus. Carne que canta. Isto tudo junto é demais. Então qual é a tua opinião?”

“Oficialmente ou não-oficialmente?”

“Ambas.”

“Oficialmente, nós somos obrigados a contatar, dar as boas-vindas e registar todas as raças se cientes ou multi seres neste quadrante do Universo, sem preconceito, medo ou favoritismo. Não-oficialmente, eu aconselho a apagar os registos e a esquecer tudo isto.”

“Eu esperava que dissesses isso.”

“Parece duro, mas existe um limite. Será que queremos realmente entrar em contato com carne?”

“Eu concordo cem por cento. O que há para dizer? ‘Olá carne. Como vai isso?’ Mas irá isto resultar? De quantos planetas estamos nós a falar?”

“Apenas um. Eles conseguem viajar até outros planetas em recipientes especiais para carne, mas eles não conseguem viver neles. E, sendo carne, eles apenas conseguem viajar através do espaço C. O que os limita à velocidade da luz e torna a possibilidade de eles alguma vez entrarem em contato bastante reduzida. Infinitesimal, na verdade.”

“Então, nós simplesmente fingimos que não há ninguém em casa no Universo.”

“Isso mesmo.”

“É cruel. Mas como tu disseste, quem quer conhecer carne? E aqueles que estiveram a bordo das nossas naves, aqueles que sondaste? Tens a certeza de que não se vão lembrar?”

“Eles serão considerados malucos se se lembrarem. Nós entrámos na cabeça deles e alisámos a carne de maneira a que somos apenas um sonho para eles.”

“Um sonho para carne! Que estranhamente apropriado, que sejamos um sonho da carne.”

“E marcámos o sector inteiro como desocupado.”

“Muito bem. Concordo, oficialmente e não-oficialmente. Caso encerrado. Existem mais? Alguém interessante nesse lado da galáxia?”

“Sim, um pouco tímida mas doce inteligência de enxame num núcleo de hidrogénio de uma estrela de classe nove na zona G445. Esteve em contato há duas rotações galácticas atrás, quer ser amigável novamente.”

“Eles voltam sempre.”

“E porque não? Imagina o quão insuportável, o quão inexprimivelmente frio seria o Universo se alguém estivesse completamente sozinho… ”

Traduzido da short story de Terry Bisson,“They’re Made Out of Meat”, publicada originalmente em 1990 e nomeada para um prémio Nebula. Foi ainda posteriormente adaptada em 2006 para uma curta-metragem:

 

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